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A questão da fome e da solidariedade classista em tempos de pandemia da COVID-19

Acerca da questão da fome: onde estávamos (entidades, movimentos, individualmente, politicamente) nos ‘dias de normalidade’ que ‘não a víamos’? Esta situação sub-humana sempre esteve ao nosso lado, sob nossos olhos.


A questão da fome, na sociedade moderna é resultado e condição estruturante de um sistema econômico, social e político de produção coletiva dos bens, produtos e riqueza, mas de apropriação privada, e que a partir disso, é organizado em classes sociais antagônicas. De um lado, a classe trabalhadora que produz a riqueza, porém não se apropria dela, de outro a burguesia, que detém e controla todo o processo produtivo e a riqueza gerada através da exploração da força de trabalho.


Essa é a estrutura basilar do capitalismo, sistema que orienta e aprisiona a existência do gênero humano, que marca e tolhe a vida de milhões de pessoas ao redor do globo, que os reduz à bestialidade, à uma vida sem qualquer possibilidade de plena realização dos sentidos, mesmo os mais elementares. Que impõe o pauperismo, a violência, a negação, a miséria, a fome, a ‘morte em vida’.


Adentramos o ano de 2020 vivenciando uma pandemia, a vida de milhares de pessoas foi suprimida por uma doença ainda sem cura. No dia 16 de julho se contabilizavam mais de 13 milhões de pessoas infectadas e 580.045 mortes no mundo e no Brasil, um dos países com mais mortes confirmadas, 76.822 óbitos e 2.014.738 de pessoas infectadas.


O período pós pandemia já anuncia um cenário de degradação e destruição societária e humana. Este panorama não é resultado de qualquer pessimismo da razão, é pura e simplesmente consequência de um sistema que controla as esferas da produção e da reprodução social priorizando a economia e o lucro em detrimento da vida. Para a burguesia, a vida da classe trabalhadora é uma mercadoria descartável. Para a classe trabalhadora, a vida é o único bem que se possui!


O capitalismo submete cotidianamente a classe trabalhadora à ‘morte em vida’, seja pela negação de saúde, alimentação, habitação, lazer, educação, saneamento básico, etc. situação que se agrava diária e amplamente, que salta à vista e exige respostas.


No Brasil, a construção das respostas às demandas imediatas de sobrevivência deu-se por meio dos direitos sociais e das políticas sociais, da luta político-classista, legal e normativa para o Estado reconhecê-las e posteriormente para efetivá-las, via leis orgânicas, financiamento e sistemas, tais quais o Sistema Único de Saúde (SUS) no âmbito da política de saúde e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no âmbito da assistência social.


No âmbito da assistência social as respostas à questão da fome se dão via programas e projetos sociais e benefícios eventuais. A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) estabelece em seu art.22 que Entendem-se por benefícios eventuais as provisões suplementares e provisórias que integram organicamente as garantias do Suas e são prestadas aos cidadãos e às famílias em virtude de nascimento, morte, situações de vulnerabilidade temporária e de calamidade pública”.  É dentro dessa delimitação que auxílios como ‘cestas básicas’ são ofertados. Está, historicamente, tem sido a resposta imediata à demanda da fome por parte do Estado brasileiro.


Além destas ações operacionalizadas via política do SUAS, ressalta-se: política social que não possui um caráter universal de acesso, que é destinada ‘a quem dela necessitar’, a resposta do governo federal à questão da fome, do desemprego e demais incertezas, negações e violências na vida da população brasileira em tempos de pandemia da COVID-19 foi, após pressão do Congresso Nacional, a liberação de um auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 por três meses (que foi prorrogado mais ainda não se sabe ao certo o valor e as datas para recebimento).


Aponta-se para o caráter extremamente limitado desse auxílio, seja pelo valor que é repassado, seja pelo tempo que será ofertado, seja pelas regras para acessá-lo, mas principalmente, por se tratar de ação isolada, desarticulada de qualquer perspectiva de atendimento universal às demandas da população brasileira, dentre estas, a prioritária que é sanar a fome.


Tais ações explicitam o caráter estrutural e classista do Estado, de opção por um projeto societário que não é o mesmo pautado e defendido pela classe trabalhadora, é o da manutenção e perpetuação da ordem sob a hegemonia e domínio do capital. Caráter este já explicitado em 1848 por Marx e Engels quando afirmam que “O poder do estado moderno não passa de um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como um todo”.


Tal afirmação deve ser inscrita e compreendida a partir das esferas da produção e da reprodução social e do contexto da luta de classes, caso contrário, ‘mata-se’ a história e a possibilidade de o gênero humano construí-la, modificá-la, permanecendo como verdade a afirmação de que o capitalismo é o patamar máximo de desenvolvimento e civilidade alcançado e possível para a humanidade. Absolutamente não é disso que se trata!


Neste contexto de crise do capital, que se agrava pela pandemia da COVID-19, a classe trabalhadora precisa retomar, fortalecer e ampliar a atuação na construção de processos de tomada de consciência de classe, no tensionamento desta ordem societária que não permite sequer a existência biológica a todos os indivíduos que a compõe. A tarefa imediata e de impulsionamento desse contexto de resistência e luta é: garantir a vida.


É preciso explicitar que as raízes dessa condição de ‘morte em vida’ são estruturantes do capitalismo, que neste sistema é somente este o lugar e condição relegados à classe trabalhadora, que é negada qualquer possibilidade de ultrapassar enquanto classe esse limite que difere e antagoniza as classes sociais que o compõe.


Diante disso, as organizações classistas possuem responsabilidades, e dentre estas, pautar e realizar ‘ações de solidariedade’ no que se refere à garantia da vida, ao enfrentamento da fome, da política de genocídio e do extermínio em massa, questões estas de ocorrência cotidiana pelo capital com respaldo do Estado, e agora em tempos de pandemia são fortemente agravadas.


O histórico de lutas, resistência e organização da classe trabalhadora brasileira tem vasto e relevante registro de ações a partir dessa perspectiva. São expressivas desde o período da escravidão, melhor dizendo, ainda no período da escravidão (uma das páginas mais degradantes, irracionais e anti-humanas da existência do gênero humano e da história do nosso país), ações de solidariedade de classe, a exemplo dos levantes. A perspectiva de solidariedade deve ser inspirada nas formas de ajuda mútua, nas formas de resistência e organização que os quilombos assumiam, na luta pela superação daquele sistema social e econômico produtivo em que a vida humana era posse de outrem.


Devem inspirarem-se nas associações criadas no seio das categorias profissionais e instituídas desde os primórdios de sua constituição e consolidação enquanto tal, e portanto, sem maior respaldo de legislações e garantias por parte do Estado, tal qual como conhecemos e temos na atualidade, via direitos trabalhistas e previdenciários, via sistema de seguridade social e das políticas sociais, apesar do caráter seletivo e focalizado que portam e as constituem.


Não devem deixar de serem inspiradas também pelas experiências históricas de luta e busca de construção de outra ordem societária, verdadeiramente justa e igualitária, sem dominação e exploração de classe, sem opressões de gênero, de orientação sexual, de raça, sem violências e negações à classe trabalhadora.


Para tanto, e considerando a condição de capitalismo dependente, de superexploração da força de trabalho, o que impõe condições mais agravadas e árduas à sobrevivência da classe trabalhadora brasileira, as ações precisam ser organicamente vinculadas e oriundas da própria classe trabalhadora, do seu reconhecimento enquanto classe.


Não pode ser orientada por viés caritativo, apelativo, assistencialista, emergencial, fragmentado e pontual de atuação em decorrência da gravidade da pandemia da COVID-19 e da amplitude que tem tomado, ou seja, não pode ser descolado de perspectivas mais amplas e tensionadoras dessa ordem econômico-social. Momentos de acirramento da própria existência humana tal qual este que estamos vivenciando pela pandemia, não são pontos fora da curva, são uma constante, e por isso precisam ser superados.


A classe trabalhadora porta em suas mãos essa possibilidade histórica. Sem voluntarismos e espontaneístas, sem ações mecanicistas seja individual ou de organizações classistas, mas também, sem desistência, com disposição e ânimo para a árdua tarefa de constituição e potencialização de ‘força social’ necessária para que seja possível não mais sentirmos e vivenciarmos a questão da fome, do medo, das violências e das negações, e sim vivermos plenamente nossos sentidos em coletividade, igualdade e liberdade.


Kathiuça Bertollo, Diretora da ADUFOP


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