Nascida em Jerusalém, a palestina Muna Muhammad Odeh reside no Brasil desde 1992. É professora associada do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB). Foi nesse ambiente acadêmico que Muna concedeu entrevista ao jornal InformANDES, no dia 10 de novembro, e contextualizou as raízes do conflito na região de Gaza, que já resultou em milhares de mortos e desabrigados.
Segundo dados da rede de notícias Al Jazeera, divulgados no dia 28 de novembro, mais de 15.000 palestinos e palestinas já foram mortos na Faixa de Gaza, a maioria mulheres e crianças, desde os ataques do Hamas contra Israel em 7 de outubro, que causaram cerca de 1,2 mil mortes e quase 240 reféns. As equipes humanitárias da ONU alertam, ainda, que 160 crianças estão sendo assassinadas todos os dias na região. Segundo o porta-voz da Organização Mundial da Saúde (OMS) o número representa uma morte a cada 10 minutos.
Para Muna Muhammad Odeh, Israel promove um apartheid no território palestino, semelhante ao regime político de segregação racial que ocorreu na África do Sul entre 1948 e 1994. E defende que a sociedade precisa se posicionar contra o que ela chama de “genocídio ao povo palestino” executado pela política israelense. “Temos o compromisso ético e histórico de apoiar a luta anticolonial palestina”, disse Muna, que cobra ainda o imediato cessar-fogo e apoio humanitário na região. Confira a entrevista.
InformANDES: Qual a sua avaliação sobre o conflito em Gaza?
Muna Muhammad Odeh: O ataque à Gaza, a barbárie que está acontecendo, não remete somente a 7 de outubro. É preciso historicizar e contextualizar. Trata-se de uma luta anticolonial do povo palestino contra a ocupação militar, o colonialismo de povoamento, que resultou na saída forçada de milhares de palestinos em 1948, e contra a destruição das suas cidades e aldeias. Boa parte da população que está em Gaza é refugiada. É uma população que foi retirada forçosamente, por meio de massacres, documentados por pesquisadores israelenses, assim como documentados em filmes recentes, como Tantura [do cineasta israelense Alon Schwarz], que falam sobre a base violenta e colonial no que concerne à relação do Estado autoproclamado de Israel, que se nega, a partir do seu aceite na Organização das Nações Unidas (ONU), a seguir qualquer resolução da ONU. Temos o compromisso ético e histórico de apoiar a luta anticolonial palestina contra Israel.
InformANDES: O conflito entre Israel e Palestina é uma disputa sobre a posse do território palestino e está no centro do debate político e diplomático atual. As disputas na região se acirraram a partir de 1948, quando foi declarada a criação do Estado de Israel. O que mudou com a criação desse Estado? Por que o mesmo não ocorreu com a Palestina?
MMO: A história nos diz que a região da Palestina histórica ficava sob o domínio do Império Otomano, o que conhecemos como Síria, Líbano, Jordânia e Palestina.
Com o enfraquecimento desse império, entra o domínio de outros poderes. Por meio de um acordo chamado de Sykes-Picot [que permitiu a partilha em 1916 do Oriente Médio entre as duas principais potências da época, a França e o então Império Britânico], começa um domínio de colonialismo.
A partir desse período, nos anos 1900, e pontualmente no caso da Palestina, as forças inglesas ocupam e estabelecem o mandato britânico [até 1948], que é repressor. Durante o mandato, ocorrem diversas revoltas, como em 1925 e 1928, em que um grupo de 300 mulheres palestinas realizaram uma manifestação perante o mandato britânico protestando contra a presença crescente de grupos judeus sionistas. Esse é o outro termo que vamos utilizar para esclarecer, pois trata-se de uma ideologia ocidental racista, que é o sionismo, totalmente diferente da religião judaica, que respeitamos e convivemos.
Ainda nesse período, como continuidade dessa luta anticolonial do povo palestino, entre 1936 e 1939, deflagra-se uma revolta palestina que dura três anos, enfrentando o mandato britânico que apoiava grupos sionistas, judeus sionistas, vindos da Europa para criar outra forma da sua existência. Essa revolta está disponível no livro de Ghassan Kanafani, que em português se chama “A revolta de 1936-1939 na Palestina”. Esses apontamentos históricos são imprescindíveis.
Em 1948, torna-se o Estado de Israel autoproclamado, o que eu faço questão de dizer. Esse aceite, no âmbito da ONU, da criação desse Estado, era condicionado à implementação da Resolução 194, que garante o retorno de refugiados, no caso, o povo palestino.
A partir disso, ocorreu a primeira Nakba, que significa catástrofe para nós, e iniciou-se a limpeza étnica e o genocídio, que resultou na expulsão e morte de dezenas de milhares de pessoas. Infelizmente, não temos os dados precisos. Recentemente, o filme Tantura retratou um dos massacres que ocorreu, e mostrou o enterro de entre 100 e 200 corpos de crianças, mulheres e homens após a criação do Estado de Israel.
Ou seja, os atos criminosos e os atos de violência continuaram e não cessaram em 1948, quando foram forçadamente expulsas da sua terra em torno de 700 mil pessoas, segundo o historiador israelense Ilan Pappe no livro “Dez mitos sobre Israel”. Houve também o apagamento de mais de 500 aldeias e cidades, que também foram esvaziadas, destruídas e totalmente reconfiguradas. Assim como o roubo de dinheiro e ouro, livros e bibliotecas que foram saqueadas, após o exército expulsar e destruir a casa dos palestinos, segundo um documentário “O Grande Roubo”, produzido pela Al-Jazeera com a colaboração de pesquisadores e pesquisadoras israelenses. Esses livros encontram-se hoje na Universidade Hebraica de Jerusalém.
Por isso, 1948 é a demarcação de uma conduta que continua até hoje por parte do Estado de Israel, que é o desrespeito e o não cumprimento de nenhuma das resoluções da ONU, do Conselho de Segurança, e da Assembleia Geral. Esse bombardeio é uma barbárie, é desumano, totalmente sem justificativa. Israel já expulsou 1,4 milhões do total de 2,3 milhões de palestinos para a região sul de Gaza. Qual é o propósito?
InformANDES: Países imperialistas sempre estiveram por trás, financiando com armas e dinheiro, os grandes conflitos nessa área, como na Guerra de Suez, Guerra dos Seis Dias e, agora, com os EUA apoiando e armando Israel. A Câmara dos Estados Unidos aprovou, no início de novembro, um pacote de US$ 14,5 bilhões em aparato militar para Israel. Na sua opinião, qual o interesse dos EUA?
MMO: Joe Biden, o atual presidente dos Estados Unidos, disse a seguinte afirmação: “Eu sou mais sionista do que os israelenses”. Ele também disse há alguns anos: “Se Israel não existisse, nós [EUA] criaríamos Israel”. Já Robert F. Kennedy Jr., que é o candidato à presidência dos Estados Unidos, declarou: “Nós apoiamos Israel incondicionalmente e vamos continuar a apoiar Israel. Por uma razão específica, clara, tranquila para nós, que é o papel que Israel tem naquela região”.
Então, temos duas questões, que é a de perpetuar a existência e estender como braço do Império dos Estados Unidos. E a segunda é garantir o petróleo, o gás, a energia daquela região. A presença de Israel certifica que nenhum desses países, que detém boa parte da reserva de petróleo e de gás natural, seja autônomo ou que desobedeça aos EUA. Essa relação orgânica, que Kennedy Jr. disse, é imprescindível para os Estados Unidos, e representa quase que a continuidade da existência do país, no que concerne à questão energética.
A primeira semana de bombardeio em Gaza, que é uma região de 40 km de comprimento por 10 km de largura, foi equivalente a um ano de bombardeio na Ucrânia. Essas proporções são importantíssimas para compreender essa conduta de dizimar qualquer possibilidade de resistência ao colonialismo. Têm sido dias de bombardeio, noite e dia, em hospitais, escolas, igrejas e mesquitas. Cerca de 50% das casas da população de Gaza já foram destruídas. Estamos falando de proporções nunca vistas e que mostram que esse poder imperialista, que não é somente dos EUA, mas países da Europa também, tem uma sede de matança, de dominação, de desrespeito ao outro, uma sede muito grande de perpetuar guerras de uma forma infinita. Os Estados Unidos acabaram de sair de uma forma vergonhosa do Afeganistão [Guerra do Afeganistão 2001-2021]. Tudo o que está acontecendo em Gaza nos lembra também o Iraque [Guerra do Iraque 2003-2011].
E o direito à resistência é garantido nas Cartas da ONU, no qual a população que esteja sob domínio de um colonialismo tem o direito de se defender, tem direito de lutar de todas as formas possíveis.
Precisamos denunciar a destruição no Iraque, na Síria, na Líbia, que são guerras por procuração. Fora as guerras na África, que sabemos que são perpetuadas e mantidas por esse poder imperial. Gaza já foi atacada de formas semelhantes, em 2009, 2012, 2014, 2018, 2021 e 2023. Esses tipos de ataques chamam de "cortar a grama". É como você ter um quintal e, de vez em quando, você corta a grama. Ou, você tem Gaza e, de vez em quando, você bombardeia. É desumano, é cruel, mas é peculiar e combina com o que o ministro de Israel falou “animais humanos” se referindo a nós, o povo palestino em Gaza, porque somos um povo e vamos continuar a ser um povo. Gaza é meu povo, Cisjordânia é meu povo. Povo que está em exílio forçado pelo mundo. Eu estou falando dos refugiados, das pessoas que saíram como exilados, às vezes de três gerações que estão nessa situação ainda, aguardando a justiça.
InformANDES: Há décadas o ANDES-SN tem se posicionado em defesa da liberdade e autodeterminação do povo palestino. Em 2018, docentes aprovaram em congresso a adesão à campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra o Estado de Israel e incentivou as suas bases a prestar solidariedade internacional à luta palestina. O BDS seria uma das saídas viáveis para o conflito Israel e Palestina?
MMO: A primeira coisa que deveria ser feita, inegavelmente, é a questão do cessar-fogo. Essas pausas humanitárias, de algumas horas, defendidas por Israel não procedem. Estamos no 32º dia [10 de novembro] de ataques. Por parte do Brasil, precisamos insistir nessa defesa edar fôlego à carta assinada por 61 parlamentares brasileiros, de partidos de esquerda e de centro, pelo cessar-fogo e contra o genocídio do povo palestino. A carta pede que não se promulguem os acordos de cooperação militar e de segurança, assinados por Jair Bolsonaro, com Israel. Lembremos que o primeiro país que o Bolsonaro visitou, quando tomou posse, foi Israel. Então, isso é simbólico e nos diz muito sobre Israel. Essas questões são importantes para a gente entender de que lado encontra-se Israel.
Outra ação chama BDS. O movimento tem como inspiração a luta contra o apartheid na África do Sul, extinto nos anos 1990. Foi realizada uma campanha, ao longo de 30 anos, até realmente fazer uma diferença, desestruturar eticamente, em termos de fama, o país, mas também economicamente e financeiramente. O peso foi acontecendo quando mundialmente foi sendo incrementada a adesão de mais países ao boicote, com desinvestimentos e sanções. Sanções seria o exemplo que eu dei dos acordos militares entre os países. O boicote existe de várias naturezas. Há o boicote comercial, o qual eu incentivo todo mundo a parar de comprar, nominalmente, de marcas, como: Carrefour, Starbucks, McDonald's. Têm vídeos de empresas como essas entregando lanche para o exército de Israel no seu ataque, no seu bombardeio, na sua barbárie contra o povo palestino. Então, tem uma ligação, uma associação direta. Essas são empresas que precisamos boicotar agora, esse tipo de boicote comercial é imprescindível. Fizemos isso no caso do apartheid da África do Sul. Leva tempo, mas faz diferença.
Outro tipo de boicote, que está ao nosso alcance, é o acadêmico, que está crescendo. São acadêmicos israelenses que estão de acordo com não estabelecer nenhuma colaboração, nenhuma cooperação com acadêmicos e acadêmicas, programas, atividades em universidades israelenses. É uma forma de poderosa de protesto que fará uma diferença e precisamos aderir a isso.
Estamos no bojo da intelectualidade, do pensamento libertário, do pensamento embasado em direitos humanos. É aqui na universidade que se constroem as narrativas. Estamos ainda em um espaço de formação, milhares de jovens circulam nesse espaço e é preciso engajar os discentes nessa discussão para se posicionarem ao lado da justiça, dos direitos humanos, das leis e das resoluções internacionais, das convenções, das cartas internacionais, que sempre foram desobedecidas e desrespeitadas por Israel. A sociedade civil se informa através de nós e se engaja conosco em uma relação de troca. Então, a gente não está somente restrito dentro dos muros da academia. Em resposta a uma postagem da reitora da nossa universidade [Márcia Abrahão], nas redes sociais, junto com o embaixador de Israel na época, sobre formas de colaboração e o convite às empresas israelenses a se instalarem no parque científico e tecnológico da universidade, foi feita uma mobilização com a Adunb [Associação dos Docentes da Universidade de Brasília- Seção Sindical do ANDES-SN] em 2021, com 17 centros acadêmicos e o DCE [Diretório Central dos Estudantes] nos mostrando contrários à colaboração com o apartheid de Israel.
Precisamos reforçar essa linha de atuação, de solidariedade com a Palestina, como fizeram na USP, Ufam Unicamp. Lembrando também o que aconteceu em várias cidades europeias da Espanha e Bélgica e chegou até a cidade de Belém do Pará. O prefeito da cidade [Edmilson Rodrigues] declarou a capital paraense como um "Espaço Livre de Apartheid", em reação à questão da violência colonial israelense.
Então, há muitas ações que podem ser feitas, em uma frente pacífica, que cria uma pressão de várias formas. Sabemos que está ocorrendo uma mudança, mesmo que gradual, mas significativa por parte da comunidade judaica internacional.
Nos Estados Unidos, vimos centenas de pessoas protestando e, muitas delas, foram presas pela polícia americana. Mas a gente os viu protestando abertamente dentro do Capitólio e em Nova Iorque. Essa movimentação precisa ser reforçada aqui no Brasil, pois temos todas as condições de fazer da mesma forma. Agora, não podemos normalizar as matanças e o que está acontecendo em Gaza. No devido tempo, tudo isso será registrado como crimes contra a humanidade.
E, reforçando o que disse no início, é imediata a necessidade de cessar-fogo, nada menos do que isso. Os médicos, as médicas, as equipes de saúde estão com poucos recursos e tendo que fazer escolhas de que vida priorizar. As crianças estão sendo operadas sem anestesia. Desde o início dos ataques à Gaza, forças israelenses fizeram um cerco gerando escassez de água, comida, energia e combustível. Essa é a realidade que o ministro da Defesa de Israel colocou como sendo a conduta deles. É um crime de guerra, um crime contra a humanidade, contra uma população de 2,3 milhões de pessoas que perderam seus lares e vidas. O número de pessoas que estão em sofrimento, com doenças crônicas, com câncer, com falta de medicamento. A situação é gravíssima. Temos que atuar, cada um no seu espaço, no seu escopo. Não podemos esquecer e não podemos normalizar.
Leia o InformANDES de Novembro na íntegra:
PDF - https://is.gd/bKwTE4
Issu - https://is.gd/3HbSBl
Fonte: ANDES-SN
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