Entrevista: Muna Muhammad Odeh analisa a intensificação da ofensiva de Israel em Gaza
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Para compreender um pouco mais do estĆ”gio atual do genocĆdio do povo palestino e o que significa o movimento de Israel de declarar a ocupação da cidade de Gaza, o ANDES-SN entrevistou a docente palestina Muna Muhammad Odeh, 2ĀŖ vice-presidenta da regional Planalto do ANDES-SN. Para a professora, a declaração de tomar a cidade de Gaza representa a continuidade e o aprofundamento dos planos do governo israelense de seguir com o genocĆdio do povo palestino em Gaza e a limpeza Ć©tnica do território. Confira a Ćntegra da entrevista realizada para composição daĀ matĆ©ria "Israel intensifica ofensiva em Gaza e usa fome como arma de guerra", publicada no InformANDES de agosto.

ANDES-SN: Como você avalia a declaração de Israel dos planos de tomar a Faixa de Gaza, ocupando a cidade de Gaza? O que representa essa ocupação?
Muna Muhammad Odeh: A declaração de tomar a cidade de Gaza representa a continuidade e o aprofundamento dos planos do governo israelense de seguir na efetivação dos dois crimes que anseia implementar, hĆ” 22 meses, e que seguem em curso: primeiro, o genocĆdio contra o povo palestino em Gaza, e que se materializa no assassinato de mais de cem pessoas por dia, incluindo as que sĆ£o assassinadas na busca de comida; alĆ©m de milhares de pessoas feridas, muitas das quais vivem a morte lenta, uma vez que o regime israelense destruiu todo o sistema de SaĆŗde, inclusive executando e sequestrando profissionais de SaĆŗde, bem como o bombardeio do sistema de Saneamento BĆ”sico, e com isso expondo as pessoas a condiƧƵes que favorecem a morte, e nĆ£o a recuperação de uma ferida, de uma amputação; tambĆ©m pela ausĆŖncia de remĆ©dios e outros insumos proibidos de entrar Ć Gaza por Israel. Por isso, precisamos nos atentar a essa dimensĆ£o crĆtica de mortes lentas entre a população. Segundo, ocupar a cidade de Gaza significa a expulsĆ£o de em torno de 1 milhĆ£o de habitantes, para tornĆ”-las refĆ©ns dentro de um espaƧo geogrĆ”fico altamente restrito, um real e concreto campo de concentração, no qual serĆ” possĆvel vigiar e controlar, criando uma Ć”rea militarmente cercada e onde toda necessidade humana - alimentar-se, ir e vir, se apoiar no que restou de laƧos familiares -, tudo serĆ” hermeticamente selado com o Ćŗnico propósito de continuar o projeto sionista elementar, que Ć© a limpeza Ć©tnica do povo palestino.JĆ” ouvimos declaraƧƵes do próprio premiĆŖ Netanyahu esclarecendo que, após ocupar a cidade de Gaza serĆ” possĆvel a āsaĆda voluntĆ”riaā das pessoas, termos que procuram o engano, a distorção, a hasbara [explicação] costumeira do apartheid israelense, pois em efeito estĆ” se falando de a limpeza Ć©tnica de Gaza. Netanyahu e o amplo acreditando que depois de destruir de todas as condiƧƵes de vida e de sobrevivĆŖncia, o povo palestino de Gaza serĆ” obrigado, nĆ£o tendo outra opção a nĆ£o ser desistir e sair.
ANDES-SN: A escalada da violĆŖncia e do uso da fome como arma de guerra por Israel parece ter despertado a atenção mundial para o genocĆdio na Palestina. Algumas naƧƵes estĆ£o reconhecendo Palestina como Estado e manifestaƧƵes de rua em diversos paĆses, inclusive em Israel, pedem o fim da guerra. Como vocĆŖ avalia essa reação?
Muna Muhammad Odeh: Importante iniciar constatando que a polĆtica de usar a fome como arma de controle e de subjugação do povo palestino foi instituĆda hĆ” anos em Gaza, por meio do embargo imposto em 2007, interditando um gama de produtos vitais, inclusive alimentares, mas tem sido exacerbada nos Ćŗltimos 22 meses.
Foi implementada de forma gradual, nĆ£o somente pelo controle de entrada de alimentos. Desde outubro de 2023, foram sistematicamente destruĆdas as regiƵes agrĆcolas em Gaza, incluindo a produção de gado, frango e outras fontes de proteĆna animal. Com isso, a infraestrutura da seguranƧa alimentar de Gaza foi aniquilada, por bombardeio e outros meios belicistas.
Palestina Ć© reconhecida como Estado pela grande maioria dos paĆses membros das NaƧƵes Unidas, ou seja 149 do total de 193, isto Ć© 75%. Quem ainda nĆ£o reconhece sĆ£o principalmente paĆses europeus, os Estados Unidos, CanadĆ”, AustrĆ”lia e outros aliados de Israel que, nĆ£o por coincidĆŖncia, tĆŖm legados de colonialismo, racismo e apartheid contra povos indĆgenas. As reaƧƵes destes paĆses Ć essa altura, evidentemente bem tardias como demonstram as consequĆŖncias do genocĆdio, chegam curiosamente, e diria desumanamente, condicionadas, pois colocam regras em cima do povo palestino sob ocupação e demandam que este seja ādócil e caladoā quando impƵe exigĆŖncias Ć vĆtima e nĆ£o ao opressor, colonizador e genocida Estado de Israel. Ademais, esse reconhecimento nĆ£o Ć© imediato, malgrado a situação crĆtica e desastrosa em Gaza, ficou estipulado para setembro de 2025. Na essĆŖncia, falta seriedade em termos de respostas Ć altura dos crimes que Israel continua a cometer, com total impunidade, por parte dos governos de peso e de hegemonia. De toda forma, o reconhecimento por si só nĆ£o Ć© suficiente, Ć© preciso que esses paĆses de poder e hegemonia polĆtica, militar e econĆ“mica deem a garantia para a viabilidade e a soberania de um tal Estado Palestino que desejam reconhecer. TambĆ©m, Ć© questĆ£o chave que esse reconhecimento nĆ£o seja uma forma de contornar o processo de julgamento de Israel e de sua responsabilidade pelo genocĆdio, pela fome imposta em Gaza, pelo apartheid na CisjordĆ¢nia e por outros crimes que vem cometendo com total impunidade. Portanto, e Ć luz da recorrente blindagem feita Ć Israel por parte desses paĆses ocidentais, Ć© preciso que fiquemos, nós que zelamos pelo direito Ć vida, Ć dignidade e Ć autodeterminação de todos os povos, atentos e insistindo no julgamento de Israel em todos os possĆveis foros de JustiƧa, quer sejam institucionalizados, por exemplo, o ICJ e o ICC, ou da sociedade civil - Hind Rajab Foundation e outros - bem como dos movimentos populares.

Quanto Ć situação em Israel, as pesquisas mais recentes, inclusive israelenses, seguem reafirmando que a maioria da população israelense nĆ£o se opƵe ao genocĆdio, nem Ć limpeza Ć©tnica, e tampouco irĆ” protestar em massa significativa contra o uso da fome como arma de repressĆ£o, dominação e subjugação contra o povo palestino. Ć preciso encarar essa realidade e dizer que os protestos de ruas dos israelenses tratam essencialmente de outros assuntos e de conflitos internos: a libertação dos prisioneiros israelenses em Gaza, o recrutamento militar de grupos religiosos judeus, a questĆ£o da separação entre poderes do Estado e assim por diante.
ANDES-SN: Como as naƧƵes e a população podem se colocar para pressionar pelo fim do genocĆdio em Gaza?
Muna Muhammad Odeh: Preciso dizer, em primeiro lugar, que tudo gira em torno da forƧa e da contĆnua resistĆŖncia do povo palestino e a inabalĆ”vel crenƧa na justiƧa da sua causa ao longo de uma história de luta anticolonial, que se estende hĆ” mais de 100 anos, quando o poder imperial britĆ¢nico foi o precursor para a criação de uma outra entidade colonial que Ć© Israel.Ā Essa forƧa e resistĆŖncia contĆnua do povo palestino inspirou os movimentos de solidariedade em todo o globo, nas palavras da militante acadĆŖmica Angela Davis: "Nós depositamos nossos sonhos na Palestina".
Vimos protestos semanais de milhares de pessoas ocupando as ruas de capitais dos paĆses ocidentais - Londres, Paris, Amsterdam, Berlin e outros, cujos governos tĆŖm mostrado incondicional apoio a Israel militar, econĆ“mica e diplomaticamente. Nesses paĆses, os protestos tĆŖm trazido importantes resultados, incluindo congelar a exportação de armas e de produtos especĆficos; restriƧƵes nos convĆŖnios comerciais, impactos nas relaƧƵes diplomĆ”ticas dentro outras visĆveis mudanƧas, que tĆŖm levado ao questionamento do princĆpio da impunidade de Israel como vĆtima, uma falĆ”cia atĆ© entĆ£o dominante e pouco questionada.
Ć preciso entender aqui que o retrato de Israel, enquanto continuidade do colonialismo europeu e branco, foi o veĆculo para justificar seus crimes desde 1948 atĆ© os dias de hoje, de forma assimĆ©trica e distorcida.Ā As novas geraƧƵes desses paĆses ocidentais se encontram perante as contradiƧƵes que vivem sistemas de neoliberalismo e do capitalismo, que cada vez tĆŖm exacerbado a pobreza e a desigualdade internamente, fazendo com que esses jovens se vejam descrentes e crĆticos do imperialismo e do colonialismo. As pesquisas, no caso, demonstram que Israel vem perdendo apoio significativamente em paĆses ocidentais de centro e sendo considerado como um paĆs pĆ”ria.
A solidariedade tem sido resumida a atos de repĆŗdio nas ruas, em questionar lideranƧas polĆticas para incriminar Israel, em ajuda concreta de envio de profissionais de SaĆŗde em particular, sendo que muitos sĆ£o filhos e filhas de migrantes advindos do Sul Global, o que estabelece novas realidades na solidariedade da SaĆŗde global, de forma a descolonizar essa Ć”rea de conhecimento e de prĆ”tica. Por fim, seguir e implementar o chamado palestino para o BDS - Boicote, Desinvestimento e SanƧƵes, movimento que tem realizado importantes conquistas, cujo objetivo Ć© criar pressĆ£o suficiente para o fim do colonialismo de Israel, o direito de retorno dos palestinos e palestinas que passaram pelo crime de limpeza Ć©tnica executado por Israel e pelo fim do apartheid israelense.Ā Ā
Nos paĆses do Sul global temos vistos aƧƵes similares e com impactos mais significativos na esfera de reconhecimento do genocĆdio em Gaza em nĆvel dos governos - Brasil, ColĆ“mbia, dentro outros -, bem como os protestos, atos de repĆŗdio, boicote acadĆŖmicos e dezenas de outras aƧƵes que tĆŖm mobilizado discussƵes e gerado, em alguns casos, enfrentamentos com alguns grupos evangĆ©licos da direita, historicamente aliados ao apartheid de Israel.
Importante dizer que essas vozes e movimentos solidĆ”rios chegam e sĆ£o ouvidos e muito apreciados pelo povo palestino, que vive o cerco, o genocĆdio, a limpeza Ć©tnica e o colonialismo brutal de Israel. Faz-se necessĆ”rio nĆ£o abandonar a Palestina nessa conjuntura crĆtica, faz-se importante nĆ£o normalizar os crimes que Israel comete todo dia e faz-se imperativo que as pessoas entendam que a solidariedade com um povo que luta pela sua vida e sua autodeterminação Ć© um ato de autovalorização da própria pessoa que solidariza.Ā
Portanto, cada um e cada uma, conforme sua capacidade de atuar, pode se engajar em atos de repĆŗdio, de protesto e de BDS e de continuar a falar sobre a Palestina e sobre o fim do colonialismo e do apartheid imposto por Israel.Ā Ā Ā
ANDES-SN: O assassinato de uma equipe da agĆŖncia de notĆcias Al Jazeera [em 10/8] chamou tambĆ©m atenção para o grande nĆŗmero de jornalistas jĆ” assassinados por Israel, considerado o maior de todas as recentes guerras. O que motiva essa guerra tambĆ©m contra a imprensa?
Muna Muhammad Odeh: O histórico do colonialismo de Israel contém vÔrios casos de assassinato de jornalistas, por exemplo, em Gaza durante a Marcha de Retorno de 2018. Sobre isto, o Repórteres Sem Fronteira disse o seguinte: "No quarto aniversÔrio da morte do jornalista palestino Ahmed Abu Hussein pela bala de franco-atirador israelense que o feriu fatalmente enquanto cobria um dos protestos da "Grande Marcha de Retorno" perto da fronteira israelense na Faixa de Gaza, a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) anuncia que registrou mais de 140 violações israelenses contra jornalistas palestinos desde que esses protestos semanais começaram em março de 2018". Israel-Palestina: Quatro anos de violência contra jornalistas palestinos que cobriam os protestos da "Marcha do Retorno" | RSF
Vimos tambĆ©m o caso de Shireen Abu Aklah, jornalista palestina de Al Jazeera morta em 11 de maio de 2022, enquanto cobria o perĆodo de ataques militares na CisjordĆ¢nia. Como sempre, Israel mentiu e deu uma versĆ£o fabricada de que ela teria sido morta por tiros palestinos e, um longo perĆodo depois, admitiu o assassinato dizendo que foi por engano, sempre contando com a impunidade de um poder colonial blindado pelo ocidente do centro.Ā

Em todos os casos, fica evidente que Israel desejava o silenciamento da voz de jornalistas palestinas e palestinos, e que Ć© sempre melhor que a verdade sobre seus crimes e as atrocidades sejam ocultados do mundo, pois Ć© um Estado nada democrĆ”tico e muito longe de ser, como deseja transmitir ao mundo, o fator ācivilizatórioā naquela regiĆ£o.Ā
Na atual guerra de Israel contra o povo palestino de Gaza, a intensificação da violĆŖncia contra o corpo de jornalistas reflete ainda mais o desespero de Israel de encobertar a verdade, de barrar e apagar a transmissĆ£o do genocĆdio, da limpeza Ć©tnica, da matanƧa de crianƧas e da sua mutilação, do bombardeio e da destruição de tudo que Ć© vida em Gaza. Eis uma situação inusitada, de profissionais de jornalismo sendo os Ćŗnicos testemunhos a gravar e a transmitir tudo o que acontece em Gaza. Na falta deles e delas, nĆ£o terĆamos tido o registro do genocĆdio de Gaza, de forma mais precisa, corajosa e profundamente Ć©tica, pois sĆ£o profissionais que se recusaram a se silenciar, deixando passar os crimes de Israel sem que o mundo saiba, sem que o mundo tambĆ©m seja testemunho.
Israel nĆ£o permitiu a entrada de jornalistas internacionais, achando que, com isso, nĆ£o teria evidĆŖncias crĆveis, desde uma perspectiva racista de que nĆ£o tem credibilidade o que sai de notĆcia pelo jornalismo palestino. A cada assassinato, Israel acreditava que iria intimidar jornalistas em Gaza, no entanto, isso nĆ£o ocorreu e continuamos a ouvir, a ver e a se indignar perante os crimes cometidos por Israel diariamente em Gaza.
Comentaristas na Ć”rea notam que jornalistas e profissionais da Ć”rea de mĆdia de Gaza evoluĆram em formas de transmissĆ£o de notĆcias e de providenciar trabalhos profissionais que desafiam os contextos de genocĆdio e de limpeza Ć©tnica as quais eles próprios sĆ£o vĆtimas. Num cenĆ”rio desses, quando a fome se exacerba em Gaza, assistimos a uma reportagem da mĆ©dica que tem fome, atende pacientes feridos e com fome, sendo tudo isso filmado e reportado por uma jornalista e sua equipe, tambĆ©m com fome. Tais realidade tĆŖm comovido o mundo, aprofundado a solidariedade com a luta do povo palestino ao mesmo tempo que aumentando, exponencialmente, o repĆŗdio contra o apartheid israelense e seus crimes.
Leia aqui o InformANDES de agosto com matƩria sobre a ofensiva de Israel em Gaza e o assassinato de mais de 240 jornalistas.
Fonte: ANDES-SN *Fotos: Eline Luz / Imprensa ANDES-SN